Minhas
mais humildes reverências a todas e todos! Com muita honra inauguro meu
primeiro post no blog da nossa Irmandade Polimata, Templo Nawa, de Cruzeiro do
Sul, estado do Acre.
Flores vistosas encontradas no Ramal São Francisco.
E
daqui direto do ramal 3 (ramal São Francisco), no coração da Amazônia ocidental
brasileira, vou contar um pouco sobre nossos projetos de estudos botânicos e
como temos desenvolvido esta atividade ao longo da jornada que está sendo
trilhada. Importante dizer que, no meu sentir, tudo (ou quase tudo) está conectado
e, neste sentido, me refiro tanto às minhas práticas espirituais (sādhanā), quanto ao
meu trabalho profissional e seva
no Templo. Assim, não vejo limites concretos entre o fim de um assunto e o
início de outro, pois procuro fazer deste conhecimento, através da experiência
diária, o meu próprio bhakti, ou caminho
devocional.
Ramal São Francisco.
No
sentido de buscar esta harmonia, me parece fundamental destacar os
conhecimentos e práticas dos povos tradicionais, já que esta região do Acre é
uma importante área onde convivem lado a lado, vários grupos de culturas
indígenas, caboclas e seringueiras, que aliados a esta riqueza e diversidade
biológica única, colaboram para preservar uma das maiores áreas de biodiversidade
do planeta.
À esquerda: mudas jovens de samaúma nascidas espontaneamente e coletadas para cultivo no viveiro; no centro: fungo raro que nasce em madeira decomposta; à direita: cipó nas matas do Ramal São Francisco.
Assim,
inspirada neste arcabouço de saberes - que, no caso das plantas, envolve desde sua
taxonomia (que trata da identificação, classificação e nomenclatura) até os
seus diversos usos (alimentação, construção, medicamentos, artesanatos,
combustível, entre outros, tidos como “úteis”), venho cuidadosamente estudando
as diferentes espécies das vastas matas da região, sempre contando com o apoio
dos moradores locais, que são verdadeiros professores da floresta! Nossa
intenção é ampliar nossos conhecimentos, para que possamos nos empenhar na preservação
e conservação desta riqueza. Para isto, além da pesquisa propriamente dita,
também produzimos em nosso viveiro mudas de espécies nativas, frutíferas e,
claro, medicinais, como as estimadas rainha (chacrona ou simplesmente folha,
como se diz popularmente aqui no Acre) e jagube (também mais conhecido
popularmente como cipó).
Psychotria viridis, a rainha. No centro, parte abaxial da folha, mostrando as domácias, popularmente conhecidas como "velas". Na vela, moram ácaros que se alimentam de fungos que possam querer se alimentar da folha e prejudicá-la.
Viveiro de rainhas e mudas nativas e frutíferas.
O
plantio de legumes de horta e de roçado supera os desafios do verão que se despede!
Milho, jerimum (a abóbora do sudeste), mamão, tomate, batata-doce, inhame (o
cará do sudeste), pimenta, manjericão, rúcula, além da favorita “roça”, como é
popularmente conhecida a mandioca. O “roçado de roça” tem papel central na
história do povo acreano, sendo a base da alimentação e movimentando a economia
de muitas famílias que moram nos ramais, ademais também é o sustento
nutricional da maioria das populações indígenas do Alto Juruá.
As
eminentes PANCs (plantas alimentícias não convencionais) também têm lugar de
destaque, só que nesta ocasião o realce ocorre tanto na natureza, quanto no
nosso cardápio! Corama, camapum, caruru, ora-pro-nobis, pupunha, ingá e uma
gama de outras possibilidades de vegetais (pois as PANCs na maioria das vezes
são vistas como “mato” ou, simplesmente, sem importância aparente – para os leigos!)
se apresentam como opções nutritivas e saborosas!
Physalis angulata, o fisális ou camapum. Além de ter um frutinho saboroso, é uma planta medicinal utilizada para o combate à malária e leucemia.
Toda
esta abundância de flores, frutos, sementes, folhas, raízes... de cores e
sabores, só pode ser valorizada e preservada quando começamos a perceber os
detalhes e, num nível mais sutil, nos conectar com eles. Existe um termo,
proposto por dois estudiosos no final da década de 90, chamado “cegueira
botânica”, que é definida como a incapacidade de perceber as plantas no
ambiente. Este distanciamento do mundo natural reflete nos hábitos e na cultura
da sociedade contemporânea e, por experiência própria, acredito que criar uma
relação afetiva com as plantas também nos torna seres mais espiritualizados.
Encantadoras flores de matá-matá e pau-de-campestre, encontradas na trilha para o igarapé do Memésio.
À esquerda: fruto ainda não identificado; no centro: fruto e sementes de pente-de-macaco ou pau-de-jangada, outro nome popular pelo qual é conhecida a espécie Apeiba membranacea, árvore boa para fazer envira; à direita: sementes de uma espécie considerada madeira de lei (a mudinha já está crescendo!). Plantas encontradas na trilha do igarapé do Memésio.
À esquerda: frutos de um frondoso jatobá (ou jutaí) que está na beira do igarapé do Memésio; no centro: flor de malva, uma árvore muito abundante, que gosta de sol e de crescer em locais de capoeira. É parente do pente-de-macaco e da samaúma, sua madeira é considerada "fofa", de qualidade mole, e seus frutos produzem uma paina que é utilizada em alguns locais para fazer almofadas; à direita: flor de uma árvore com frutos muito apreciados, o pupu-da-mata (cupuaçu da mata), mas que curiosamente não caem no chão quando maduros, sendo necessária a sua escalada para realizar a coleta.
Em
razão disso, faço votos para que a observação da natureza e a escuta dos povos que
têm conhecimento dela, sejam instrumentos aliados ao nosso desenvolvimento
espiritual. No meu íntimo, também desejo que esta prática seja, também, minha realização emocional e material.
Banhos que refrescam o corpo e nutrem a alma!
Para
finalizar, deixo aqui um fragmento de texto de um livro que gosto muito e que
tem sido um grande camarada no meu entendimento sobre o Acre e suas
peculiaridades.
Práticas e verdades culturais
comandam a observação e a experimentação. A observação é detalhada, minuciosa,
e cada um está atento ao que vê e ouve. As frutas que certos peixes e caças
apreciam são investigadas a partir de suas vísceras. Observam-se os hábitos de
cada animal, a floração de cada árvore. Essa atenção constante é posta, sem
dúvida, a serviço das atividades, e o exercício dessas atividades é crucial
para que se mantenham os conhecimentos. É na caçada, no marisco, na
agricultura, no corte da seringa, nas práticas em geral, que se transmite e se
amplia o conhecimento da floresta. Não existe e não persiste um saber
desvinculado da prática. No dia em que não mais se subsistir da floresta, todo
um mundo de conhecimentos e de possibilidade de descobertas será perdido (Cunha
& Almeida 2002: p. 13 – Enciclopédia da Floresta. O Alto Juruá: Práticas e Conhecimentos
das Populações).
Com amor, Nicoll Escobar (botânica e devota interna do Templo Polimata Nawa).